A pena vermelha de José Régio
1 – O Dr. José Maria dos Reis Pereira, professor do 2.º grupo (Português e Francês) do Liceu de Portalegre, era um mestre temível. Pontual, assíduo, competente e, sobretudo, exigente. Segundo as regras pedagógicas e didácticas hoje em vigor, talvez ele fosse considerado pouco convergente com estas. Porém, naquelas décadas de vigência profissional do Dr. Reis Pereira em Portalegre, a sua monótona dicção fortemente nortenha (ou minhota) e a escassa vocação pessoal para criar um ambiente descontraído (ou agradável) na sala de aula não eram considerados itens desfavoráveis.
Os alunos respeitavam e temiam o professor, que cumpria horários, calendários, currículos e programas e que exigia trabalho e estudo. As chamadas orais e sobretudo os exercícios escritos implicavam saber a matéria e não cometer demasiados erros. O Dr. Reis Pereira era justo e exigente.
O professor não brincava em serviço e não misturava afectos com justiça. Creio ser clássico e incontornável o caso do jovem Lauro António cuja família e ele próprio eram amigos e visitas de José Régio, em Portalegre. O cineasta, numa entrevista à revista A Cidade (n.º 7 – 1.ª série, Março de 1983), recordou ter sido o seu professor de Francês, o Dr. Reis Pereira, quem lhe aplicou o único “chumbo” no Liceu…
Está tudo dito.
2 – Há meses, complementando a oferta hoteleira da cidade, foi instalado o Hotel José Régio. Declaradamente concebido segundo homenagem viva e permanente a uma figura emblemática de Portalegre, o poeta José Régio, a unidade organizou o espaço em torno da figura e obra do autor da Toada. Lembrando ainda com inteira justiça um portalegrense, Avelino Facha, que durante décadas lutou pela realização do sonho, inatingido, de ali construir um hotel, os responsáveis procuraram ligar a memória do literato a cada recanto. As imagens de Régio, os versos de Régio, os livros de Régio, a inconfundível e clara assinatura de Régio, tudo isso enche e preenche todos e quaisquer espaços e pretextos, num critério por vezes quase obsessivo. Louve-se, no entanto, a intenção.
Régio, com efeito, está ligado àqueles lugares. “Expulso” do Café Central, quartel- general da tertúlia de Feliciano Falcão onde há duas décadas se integrara, pela invasão dos serões televisivos, foi no Café Facha que retomou a tranquilidade perdida. Apesar de consideravelmente mais curta esta estadia, pelos finais dos anos cinquenta e inícios dos sessenta, foi no entanto significativa porque correspondeu a um período marcante da sua vida, entretanto liberta pela reforma dos encargos pedagógicos. Foi o tempo de encontro com os jovens do Amicitia, notável grupo cultural também ali formalizado, numa sala do primeiro andar. Ao lado desta residiu, também, um seu colega e amigo do Liceu, o Dr. Fernandes de Carvalho, genro da incontornável figura regiana que foi Dona Rosalina Vinte-e-Um.
O pretexto patrimonial de José Régio está, pois, plenamente ali justificado.
3 – A recente necessidade de me ter de deslocar a Portalegre por diversas vezes, levou-me a optar pelo Hotel Régio, como seu hóspede. Nada tenho a criticar, bem pelo contrário. São dignas e adequadas as instalações, competente o serviço, simpático o pessoal. A relação preço-qualidade é perfeita. Passe a publicidade, aliás merecida.
Há dias, a minha última estadia portalegrense coincidiu com a abertura do restaurante José Régio. Que outro nome poderia ter tido, se inserido naquele conjunto!?
Não o experimentei ainda mas acredito na sua qualidade, a avaliar pela coerência global do projecto.
Como seria lógico, do acontecimento foi feita a respectiva divulgação e publicidade, pelo menos num grande cartaz alusivo, exposto junto à porta de recepção, numas folhas volantes e num anúncio em jornal local. Formalmente, tudo normal.
Menos num pormenor dos conteúdos. E é aqui que se rompe o desejável equilíbrio. É que esse conteúdo não agradaria ao Dr. Reis Pereira.
4 – Usando uma caneta de tinta vermelha, pois a negra, habitual, era reservada para a assinatura, o rigoroso professor não se poupava na marcação dos erros e na redacção dos comentários a estes alusivos. E era implacável na defesa do idioma que tão bem servia através da sua escrita. Logicamente, via em cada aluno alguém que deveria segui-lo, se não no genial e inspirado conteúdo ao menos no respeito pela forma. E tanto a ortografia como a sintaxe lhe interessavam, com abordagem, embora mais ligeira, à própria caligrafia. E a pontuação não escapava ao seu olho crítico. Como é o caso dos pontos e das vírgulas…
Há vírgulas obrigatórias, algumas facultativas e outras absolutamente proibidas.
Comete-se com inusitada frequência o erro de separar o sujeito do predicado, nalguns casos em frases bastante curtas ou muito simples. Porém, a vírgula apenas delimita orações ou elementos de uma oração e marca geralmente uma pausa de curta duração.
O uso da vírgula, como o da restante pontuação em geral, é complexo, pois está intimamente ligado à decomposição sintáctica, lógica e discursiva das frases. Do ponto de vista lógico e sintáctico, não há qualquer motivo para separar o sujeito do seu predicado. É por vezes uma errada ou pontuada leitura que transborda para a escrita. Daí o erro…
Não se usa a vírgula para separar termos que, do ponto de vista sintáctico, estabelecem directamente uma ligação entre si, como sujeito e predicado ou entre o verbo e os seus complementos, directos ou indirectos.
Assim, logo a abrir, escrever O Restaurante José Régio, convida-o a descobrir a sua nova cozinha seria fortemente penalizado pelo guardião da pureza da língua que foi o Dr. Reis Pereira. O mesmo aconteceria com a frase final do painel e do anúncio no jornal, onde se lê: Visite-nos e experimente os mais variados pratos que o chef Pedro Pina, prepara especialmente para si. Receando que o professor não apreciasse devidamente o galicismo chef numa portuguesíssima frase, disponho da mais absoluta certeza do seu vivo repúdio pela inoportuna vírgula separando o sujeito cozinheiro da sua acção culinária.
Por curiosidade, fui ler o folheto sobre o Hotel José Régio que trouxera, com a quádrupla efígie do literato na capa branca. E aí encontrei: …o Café Facha, abria...;O Café Facha, depressa se revelou…; A cafetaria José Régio, foi pensada…
Conclusão óbvia: o responsável criativo daqueles textos teve a imensa ventura, enquanto estudante, de não ter sido aluno do Dr. José Maria dos Reis Pereira. O que inevitavelmente lhe teria acontecido seria sofrer a mesma sorte do jovem Lauro Corado.
Ou, em alternativa, aprenderia a não usar vírgulas, sistematicamente, separando o sujeito do respectivo predicado.
António Martinó de Azevedo Coutinho