quinta-feira, 3 de março de 2011

SHIBLÍ E O CACHORRO

Perguntaram a Shiblí: "quem foi o primeiro a guiar teus passos no caminho do umbral divino?"

Ele respondeu: "Certo dia , vi um cão à borda da água morrendo de sede. Quando mirava a superfície da água, via seu próprio reflexo, que ele acreditava tratar-se de outro animal; diante daquela imagem, sem beber fugia.

Finalmente a sede lhe fez perder todo conhecimento, e com ele, a paciência; de um salto se jogou na água, e no mesmo instante, o outro cachorro desapareceu.

Desaparecido aquele cão diante de seus próprios olhos, se esfumou entre ele e seu desejo, aquele obstáculo que não era senão ele mesmo.

Assim, é como desapareceu o obstáculo que se elevava diante de mim; sem dúvida alguma, quem foi assim aniquilado não foi outro senão meu eu. Desta maneira fui salvo; meu primeiro guia no Caminho foi um cachorro".

Desvanece também tu, da frente dos teus olhos. O obstáculo que te impede avançar é o teu eu; faça-o desaparecer.

O menor apego a teu eu é uma pesada corrente que trava teus pés. Se sentes a necessidade constante de Sua presença embriagadora, nunca voltes a ti. Esse é todo o vinho que precisas.

Não regresses a ti; renuncies a teu eu, a abnegação de si é "luz sobre luz". (Al Qur’an, XXIV, 35).


                                                                      ( Farid ud-Din Attar, O Livro divino)




Certo dia em que Moisés dialogava com Alláh, pareceu-lhe ouvir uma voz que lhe dizia: "Oh Moisés! Protege àquele que procura refúgio!" Ele saiu de sua contemplação e percebeu uma pomba que gritava: "Socorro! Moisés, socorro!" Moisés abriu sua manga e nela a pomba enfiou-se. Pouco depois, apareceu uma águia que lhe disse: "Tu encerras na manga algo que me pertence, dê-me o!" "Allah me ordenou abrigar àqueles que procuram refúgio", justificou-se Moisés, inclinando-se sobre sua coxa para cortar um pedaço dela e lhe dar. "Não sabes que a carne dos profetas me está proibida e que eu prometi não comê-la?" disse a águia. A águia elevou-se e pos-se a voar ao redor da cabeça de Moisés. "Deixe-me partir!" pediu a pomba. "Mas a águia está aqui, ver-te-á e pegar-te-á!" "Aquele que deu sua palavra não a tomará de volta e assim saberá mantê-la" disse-lhe a pomba. Moisés libertou a pomba. As duas aves juntaram-se e ficaram girando ao seu redor. Uma voz disse: "A águia é Gabriel, e a pomba, Miguel. Eles vieram ver se sabes manter tua palavra".




                              Abûl'-Hasan Khraqânî, "Nûr al-'ulûm" (A Luz das Ciências)

terça-feira, 1 de março de 2011

Jalal ad-Din Muhammad Rumi


                                                                       1207 - 1273


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A poesía de Rumi também foi lida no Ocidente durante séculos e lá foram introduzidas referências a ele no trabalho de Ralph Waldo Emerson e Georg Wilhelm Friedrich Hegel e muitos outros eminentes escritores. Mas nos últimos anos a popularidade do seu trabalho tem aumentado numa medida surpreendente.

Rumi nasceu em 1207 na costa leste do Império Persa. Ele nasceu na cidade de Balkh (no que é hoje o Afeganistão), e finalmente resolveu viver na cidade de Konya, no que agora é a Turquia, onde também morreu. Viveu num período de agitação social e política notável. A sua era a época da cruzadas; também a área onde Rumi viveu estava sob constante ameaça de invasão Mongol. As grandes revoluções influenciaram-no durante toda a sua vida , e também influenciaram grande parte de sua poesia.

Na sua poesia Rumi freqüentemente usa imagens que podem ser inesperadas. Por exemplo, embora o Islão proíba álcool, muitas vezes ele descreve a sensação de estar "bêbado e intoxicado como se estivesse em êxtase para com sua amada." Aqui bêbado implica o êxtase da consciência divina. 
Contudo as suas palavras são inspiradoras e sinalizadoras do que aponta para o divino.


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«Masnavi»
Jalal ad-Din Muhammad Rumi
(Poeta Sufi, s. XIII)


Vem, vem, seja você que for,
não importa se você é um infiel, um idólatra,
ou um adorador do fogo,
Vem, nossa irmandade não é um lugar de desespero
Vem, mesmo tendo violado seu juramento cem vezes,
vem assim mesmo.


Comentário -
Artur Alonso.-
A poesia sufi... aproxima-nos ao principio do ser, à essência primeira do homem como espírito... à procura da paz e harmonia no interior de cada ser...

Por isso os sufis são conscientes de que muitos são os caminhos... pelos quais se pode penetrar no mistério da vida, do ser, da humana presença.


IBN ARABÎ


«Aberto a todas as formas»

Ib'n Arabi

(Poeta Sufi, s. XII)



                           Meu coração está aberto a todas as formas:

                            é uma pastagem para as gazelas,

                            é um claustro para os monges cristãos,

                            um templo para os ídolos

                            a Caaba do peregrino,

                            as Tábuas da Torá,

                            e o livro do Alcorão


                            Professo a religião do amor,

                            e qualquer direção que avancem seus caminhos;

                            a direção do Amor

                            será minha religião e minha fé.



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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Lourenço Marques Revisited

A água que murmura espectros lentos
O que houve e não houve e não volta nunca mais
Os quartos sem esperança que os guardasse
As casas sem anjo da guarda


A luz intensa bela e dolorosa
A adolescência dilacerada
A ternura dezoito anos recusada
Na casa dos Átridas
O crime horroroso que não houve
Mas as feridas abriram manaram um sangue
Que penetra implacável as fendas do sono
E me deixa acordado à beira da estrada
Com lágrimas que percorrem
Trinta e quatro anos


                                         ALBERTO DE LACERDA pintura de Rui Filipe-1962